Quase
meia noite. Os ponteiros do relógio se arrastavam lentamente na escuridão de
breu, na casa da fazenda. Quase todas as pessoas estavam dormindo, exceto Marina,
que ainda se revirava nos cobertores, procurando uma posição em que perna
recém fraturada não incomodasse tanto. Por fim, desistiu de tentar dormir,
levantou-se cautelosamente para não acordar a irmã, e procurou os comprimidos
para dor e os fones de ouvido. Tomou dois relaxantes musculares de uma vez,
sorvendo rapidamente a água da garrafinha de plástico, e se arrastou para fora,
mancando. Os roncos na sala de estar indicavam a presença dos outros, embora
ela não fosse capaz de identificá-los naquela escuridão. O mais silenciosamente
que pôde, girou a chave na fechadura e saiu porta afora, sem medo. Sabia que
aquele lugar era seguro, mesmo naquele horário. De qualquer forma, a noite
estava tão clara que ela podia distinguir o contorno das montanhas ao longe.
Marina
atravessou a varanda em direção ao grande calçadão de pedra onde os tios
costumavam fazer churrascos e farras. Acomodando-se em uma das cadeiras
acolchoadas que a irmã havia se esquecido de guardar, ela jogou a cabeça para
trás e observou o universo nu á sua frente. Sem os arranha-céus e a poluição da
cidade grande, era fácil localizar cada estrela pulsante que dançava diante dos
seus olhos. A lua erguia-se imponente, dourada como ouro, iluminando as
pequenas estradinhas de terra e as silhuetas das árvores mais próximas, que
balançavam agourentamente á brisa gélida. Marina conectou os fones de ouvido ao
celular e selecionou vinte músicas, agrupando-as em uma play-list. Não eram felizes. Não mesmo. Mas o coração dela não
estava mesmo querendo músicas felizes, e sim aquelas que parecem álcool em
contato com as feridas abertas: machuca. Marina queria as músicas que
provocariam uma dor instantânea.
Apesar
do que estava sentindo, ela não queria chorar. Tentou sufocar a dor, organizar
o bolo desconexo de sentimentos que se aglomeravam em sua garganta, mas tudo o
que conseguiu foi abrir mais uma ferida. Segurar tudo aquilo não era a solução.
Não caberia dentro da caixinha de orgulho que ela tinha dentro de si, e
certamente, se coubesse, não ficaria guardado lá dentro por muito tempo. Marina
sentiu as lágrimas queimarem seus olhos. As estrelas ficaram momentaneamente
embaçadas e o vento soprou mais forte em seu rosto. Ela olhou ao redor,
certificando-se de que estava mesmo sozinha. A casa continuava na escuridão.
Todos dormiam. Marina puxou o ar com dificuldade, olhou para cima uma última
vez, depois sucumbiu: chorou como se tivessem acabado de lhe cortar as duas
pernas fora.
Sentimentos
grandiosos precisam de reciprocidade justamente porque não cabem dentro de um
só coração sem que haja uma série de feridas e mutilações em uma pessoa.
Sentimentos assim precisam ser divididos, aceitos por outra pessoa, outro
coração que os conforte e abrigue. A dor que Marina estava sentindo consistia
basicamente nisso: ela guardava amor, sozinha. No início, quando viveu em seu
pequeno mundo de sonhos, iludiu-se com a miragem de uma possível reciprocidade.
Mas miragens são apenas miragens, coisinhas que o cérebro cria quando não
consegue aceitar a realidade e quer de todas as formas, impor uma solução, uma
alternativa que seja, um segundo caminho. O fato é que algumas estradas vão te
levar ao mesmo lugar, mesmo que você tente ir por outros caminhos, trilhas
distintas, segundas opções. E tudo o que Marina fez não conseguiu evitar que
ela chegasse ao fim de tudo sozinha. A reciprocidade não existiu.
As
lembranças daquela noite estavam absolutamente cruéis. Aquela fazenda era
especial principalmente porque era um porto seguro, um lugar tranquilo quando
Marina precisava. Quando os problemas ameaçavam fazer seu mundo ruir, ela se
refugiava ali e sempre encontrava uma solução, um meio de escapar da
tempestade. Mas, como dizem por aí, é um risco apresentar seu porto seguro a
outras pessoas. Principalmente quando essas pessoas são tão especiais. É perigoso
porque, inevitavelmente, elas vão deixar marcas que vão continuar ali mesmo
quando elas forem embora.
Marina
fechou os olhos com força e tentou segurar o choro na garganta, mas as imagens
que surgiam em sua mente eram perversas demais. Desejou, com todas as forças,
esquecer aquele dezembro doce, onde achou ter encontrado a felicidade.
Detestava aquelas lembranças, pois elas cortavam fundo seu coração, que já era
em si um aglomerado de feridas abertas. Lembrou-se dos sorrisos, da sensação de
paz que invadia seu ser enquanto descansava em braços alheios. O céu estava
exatamente assim naquela noite. Marina distinguiu suas constelações preferidas
e observou-as atentamente, assim como fez naquele dezembro. Doce e feliz
dezembro. Se então já soubesse que tudo o que viveu foi uma farsa, talvez a dor
fosse mais amena. A grande verdade era que, sozinha naquele lugar, Marina
chorou por tudo o que queria que sua vida tivesse sido, e por perceber que seus
sonhos eram tolos diante dos planos do destino.
Ela
nunca quis que tudo acabasse daquela forma. Nunca desejou que sua história
tivesse tomado aquele rumo. Quando choramos por algo que acabou, certamente
aquilo foi bom, nos trouxe paz, alegria, ou algo mais forte. Tão forte que nós
choramos por saber que não o teremos mais, por melhor que isso seja para o
nosso futuro. Marina sempre se deu demais em prol das pessoas que ama. Sempre
se desmontou, moldou, reorganizou tudo e qualquer coisa para conseguir se
encaixar perfeitamente na vida das pessoas, no mundo. De tanto se desmontar, se
quebrou. Marina estava quebrada e sabia disso melhor que todos os outros. Seu
coração e seu cérebro estavam trabalhando de forma diferente agora, pois não se
conectavam mais. Razão e emoção pareciam ter, definitivamente, se separado dentro
dela.
Mesmo sabendo que toda a dor era fruto da
mentira que havia vivido por seis longos (e ao mesmo tempo, tão curtos) meses,
ela não podia negar que estava começando a sentir uma falta desesperada
daqueles tempos. Mas não se pode viver de sonhos, Marina! Eu sei, ela me
responde, ranzinza. Todo mundo sabe. A realidade, embora mais cruel, é também
mais atrativa e muito mais convidativa. Ela nos apresenta o mundo como o é, sem
máscaras ou mentiras fantasiadas de verdades. Viver dentro dos sonhos é bonito.
Quente e aconchegante. Mas só a realidade é capaz de nos conceder o chão que
nós precisamos para seguir em frente. Os sonhos, embora nós gostemos de
vivê-los, são uma eterna desculpa para não viver tudo o que a realidade nos
oferta, e que, em geral, são coisas boas.
Perto
das duas horas da madrugada, Marina decidiu voltar para o quarto. Agora os
relaxantes musculares estavam fazendo o efeito esperado. Ligeiramente grogue, a
dor completamente aliviada, ela sorriu antes de voltar para dentro. Ao pé da
varanda, uma última olhada para o céu. Embora aquele dezembro tenha ficado no
passado, o brilho daquelas estrelas presenciou tudo o que aconteceu naquela
noite. Boas lembranças, retiradas de mais um sonho que acabou. Uma nuvem de
mentirinha que se desfez. A nostalgia crescia em ondas dentro dela, mas as
lágrimas já não escorriam. Embora pisoteada, com o coração completamente
partido e ainda sangrando, ela sabia que as coisas melhorariam. As razões do
destino são obscuras, mas talvez em um futuro não muito distante, ela
compreendesse todas aquelas mudanças repentinas e dolorosas.
Marina
é apenas mais uma adolescente de dezenove anos que teve o coração partido por
um idiota. Ela vai saber o que fazer com isso. É só mais uma entre as centenas
de decepções que ela teve e terá na vida.
Play-list da
Marina (as 20 músicas tristes):
• Sparks – Coldplay.
• Everything
– Lifehouse.
• Make you feel
my love – Adele.
• Careful where you stand –
Coldplay.
• Love of my
life – Queen.
• If you say so
– Lea Michele’s voice.
• Face the sun
– James Blunt.
• Vento no litoral – Legião Urbana.
• The reason –
Hoobastank.
• Clair de Lune
– Debussy.
• Fly away from
here – Aerosmith.
• Codinome
beija-flor – Cazuza’s voice.
• How could and
angel break my heart? – Toni Braxton.
• In loving
memory – AlterBridge.
• Lama – Luxúria.
• Mais que a mim – Ana Carolina ft. Maria
Gadú.
• Mil pedaços – Legião Urbana.
• You lost me –
Christina Aguilera.
• Your love
means everything – Coldplay.
• Proof – Coldplay.
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