sábado, 7 de junho de 2014

O porto-seguro de Marina: as marcas e lembranças que não querem ir embora...



Quase meia noite. Os ponteiros do relógio se arrastavam lentamente na escuridão de breu, na casa da fazenda. Quase todas as pessoas estavam dormindo, exceto Marina, que ainda se revirava nos cobertores, procurando uma posição em que perna recém fraturada não incomodasse tanto. Por fim, desistiu de tentar dormir, levantou-se cautelosamente para não acordar a irmã, e procurou os comprimidos para dor e os fones de ouvido. Tomou dois relaxantes musculares de uma vez, sorvendo rapidamente a água da garrafinha de plástico, e se arrastou para fora, mancando. Os roncos na sala de estar indicavam a presença dos outros, embora ela não fosse capaz de identificá-los naquela escuridão. O mais silenciosamente que pôde, girou a chave na fechadura e saiu porta afora, sem medo. Sabia que aquele lugar era seguro, mesmo naquele horário. De qualquer forma, a noite estava tão clara que ela podia distinguir o contorno das montanhas ao longe.
Marina atravessou a varanda em direção ao grande calçadão de pedra onde os tios costumavam fazer churrascos e farras. Acomodando-se em uma das cadeiras acolchoadas que a irmã havia se esquecido de guardar, ela jogou a cabeça para trás e observou o universo nu á sua frente. Sem os arranha-céus e a poluição da cidade grande, era fácil localizar cada estrela pulsante que dançava diante dos seus olhos. A lua erguia-se imponente, dourada como ouro, iluminando as pequenas estradinhas de terra e as silhuetas das árvores mais próximas, que balançavam agourentamente á brisa gélida. Marina conectou os fones de ouvido ao celular e selecionou vinte músicas, agrupando-as em uma play-list. Não eram felizes. Não mesmo. Mas o coração dela não estava mesmo querendo músicas felizes, e sim aquelas que parecem álcool em contato com as feridas abertas: machuca. Marina queria as músicas que provocariam uma dor instantânea.
Apesar do que estava sentindo, ela não queria chorar. Tentou sufocar a dor, organizar o bolo desconexo de sentimentos que se aglomeravam em sua garganta, mas tudo o que conseguiu foi abrir mais uma ferida. Segurar tudo aquilo não era a solução. Não caberia dentro da caixinha de orgulho que ela tinha dentro de si, e certamente, se coubesse, não ficaria guardado lá dentro por muito tempo. Marina sentiu as lágrimas queimarem seus olhos. As estrelas ficaram momentaneamente embaçadas e o vento soprou mais forte em seu rosto. Ela olhou ao redor, certificando-se de que estava mesmo sozinha. A casa continuava na escuridão. Todos dormiam. Marina puxou o ar com dificuldade, olhou para cima uma última vez, depois sucumbiu: chorou como se tivessem acabado de lhe cortar as duas pernas fora.
Sentimentos grandiosos precisam de reciprocidade justamente porque não cabem dentro de um só coração sem que haja uma série de feridas e mutilações em uma pessoa. Sentimentos assim precisam ser divididos, aceitos por outra pessoa, outro coração que os conforte e abrigue. A dor que Marina estava sentindo consistia basicamente nisso: ela guardava amor, sozinha. No início, quando viveu em seu pequeno mundo de sonhos, iludiu-se com a miragem de uma possível reciprocidade. Mas miragens são apenas miragens, coisinhas que o cérebro cria quando não consegue aceitar a realidade e quer de todas as formas, impor uma solução, uma alternativa que seja, um segundo caminho. O fato é que algumas estradas vão te levar ao mesmo lugar, mesmo que você tente ir por outros caminhos, trilhas distintas, segundas opções. E tudo o que Marina fez não conseguiu evitar que ela chegasse ao fim de tudo sozinha. A reciprocidade não existiu.
As lembranças daquela noite estavam absolutamente cruéis. Aquela fazenda era especial principalmente porque era um porto seguro, um lugar tranquilo quando Marina precisava. Quando os problemas ameaçavam fazer seu mundo ruir, ela se refugiava ali e sempre encontrava uma solução, um meio de escapar da tempestade. Mas, como dizem por aí, é um risco apresentar seu porto seguro a outras pessoas. Principalmente quando essas pessoas são tão especiais. É perigoso porque, inevitavelmente, elas vão deixar marcas que vão continuar ali mesmo quando elas forem embora.
Marina fechou os olhos com força e tentou segurar o choro na garganta, mas as imagens que surgiam em sua mente eram perversas demais. Desejou, com todas as forças, esquecer aquele dezembro doce, onde achou ter encontrado a felicidade. Detestava aquelas lembranças, pois elas cortavam fundo seu coração, que já era em si um aglomerado de feridas abertas. Lembrou-se dos sorrisos, da sensação de paz que invadia seu ser enquanto descansava em braços alheios. O céu estava exatamente assim naquela noite. Marina distinguiu suas constelações preferidas e observou-as atentamente, assim como fez naquele dezembro. Doce e feliz dezembro. Se então já soubesse que tudo o que viveu foi uma farsa, talvez a dor fosse mais amena. A grande verdade era que, sozinha naquele lugar, Marina chorou por tudo o que queria que sua vida tivesse sido, e por perceber que seus sonhos eram tolos diante dos planos do destino.
Ela nunca quis que tudo acabasse daquela forma. Nunca desejou que sua história tivesse tomado aquele rumo. Quando choramos por algo que acabou, certamente aquilo foi bom, nos trouxe paz, alegria, ou algo mais forte. Tão forte que nós choramos por saber que não o teremos mais, por melhor que isso seja para o nosso futuro. Marina sempre se deu demais em prol das pessoas que ama. Sempre se desmontou, moldou, reorganizou tudo e qualquer coisa para conseguir se encaixar perfeitamente na vida das pessoas, no mundo. De tanto se desmontar, se quebrou. Marina estava quebrada e sabia disso melhor que todos os outros. Seu coração e seu cérebro estavam trabalhando de forma diferente agora, pois não se conectavam mais. Razão e emoção pareciam ter, definitivamente, se separado dentro dela.
 Mesmo sabendo que toda a dor era fruto da mentira que havia vivido por seis longos (e ao mesmo tempo, tão curtos) meses, ela não podia negar que estava começando a sentir uma falta desesperada daqueles tempos. Mas não se pode viver de sonhos, Marina! Eu sei, ela me responde, ranzinza. Todo mundo sabe. A realidade, embora mais cruel, é também mais atrativa e muito mais convidativa. Ela nos apresenta o mundo como o é, sem máscaras ou mentiras fantasiadas de verdades. Viver dentro dos sonhos é bonito. Quente e aconchegante. Mas só a realidade é capaz de nos conceder o chão que nós precisamos para seguir em frente. Os sonhos, embora nós gostemos de vivê-los, são uma eterna desculpa para não viver tudo o que a realidade nos oferta, e que, em geral, são coisas boas.
Perto das duas horas da madrugada, Marina decidiu voltar para o quarto. Agora os relaxantes musculares estavam fazendo o efeito esperado. Ligeiramente grogue, a dor completamente aliviada, ela sorriu antes de voltar para dentro. Ao pé da varanda, uma última olhada para o céu. Embora aquele dezembro tenha ficado no passado, o brilho daquelas estrelas presenciou tudo o que aconteceu naquela noite. Boas lembranças, retiradas de mais um sonho que acabou. Uma nuvem de mentirinha que se desfez. A nostalgia crescia em ondas dentro dela, mas as lágrimas já não escorriam. Embora pisoteada, com o coração completamente partido e ainda sangrando, ela sabia que as coisas melhorariam. As razões do destino são obscuras, mas talvez em um futuro não muito distante, ela compreendesse todas aquelas mudanças repentinas e dolorosas.
Marina é apenas mais uma adolescente de dezenove anos que teve o coração partido por um idiota. Ela vai saber o que fazer com isso. É só mais uma entre as centenas de decepções que ela teve e terá na vida.

Play-list da Marina (as 20 músicas tristes):

• Sparks – Coldplay.
Everything – Lifehouse.
• Make you feel my love – Adele.
• Careful where you stand – Coldplay.
• Love of my life – Queen.
• If you say so – Lea Michele’s voice.
• Face the sun – James Blunt.
• Vento no litoral – Legião Urbana.
• The reason – Hoobastank.
• Clair de Lune – Debussy.
• Fly away from here – Aerosmith.
• Codinome beija-flor – Cazuza’s voice.
• How could and angel break my heart? – Toni Braxton.
• In loving memory – AlterBridge.
• Lama – Luxúria.
• Mais que a mim – Ana Carolina ft. Maria Gadú.
• Mil pedaços – Legião Urbana.
• You lost me – Christina Aguilera.
• Your love means everything – Coldplay.
• Proof – Coldplay.

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